Uma amizade recente é uma estudante austríaca, residente nos arredores de Viena, que conheci fazendo intercâmbio em medicina no Brasil.
Outra nova amizade é uma ucraniana radicada na América que veio visitar uma amiga americana que reside há dois anos no Brasil (que, por acaso, é a minha outra amizade estrangeira e minha professora particular de inglês). Conversando com a ucraniana (em inglês, óbvio, não falo russo, nem ela português), aproveitei para "apresentar" a ela a nossa escritora brasileira Clarice Lispector, também nascida ucraniana.
A minha nova
amiga já voltou para a América e, assim como o mais recente escritor
biógrafo da Clarice o norte americano Benjamim Moser, ela também ficou fascinada pela nossa poeta nascida ucraniana, e agora está estudando português para decifrar a
poesia da nossa indecifrável Clarice (*quem quiser
detalhes sobre o autor e a biografia de Clarice Lispector, acesse link no final do texto).
A amizade
sempre flui fácil com os norte-americanos e com os europeus (e até com asiáticos e africanos) que vêm ao Brasil. Mas, e quanto aos latinos de idioma espanhol? O que acontece? Quando comento sobre os
novos amigos europeus e norte americanos, as expressões são do tipo “legal", "cool", "maneiro”, mas quando falo da amizade com os hermanos latinos, as caras
são muitas vezes de muxoxo, de desdém, e ainda ganho conselhos de alguns (principalmente das
mulheres) para “tomar cuidado com os machos latinos”. Por que, diabos, esse
preconceito?
Como
brasileiros, apesar de sermos considerados “cucarachas” por grande parte dos norte-americanos (e também por muitos europeus), temos a pretensão de nos acharmos melhor que os demais
latinos, e tendemos a rotulá-los (os demais latinos) como "inferiores", incultos, até mesmo
traficantes ou membros das FARCs (ou
indiretamente envolvidos com), ou então, simplesmente “galinhas” que não merecem
créditos.
Pois minha
mais nova amizade internacional é um latino americano, mais especificamente um
colombiano. E num papo bem “portunhol” dos dois lados, ele reclama (e ele não é o primeiro
latino que conheci com a mesma reclamação) dessa visão equivocada que nutrimos,
mutuamente, entre nós, latinos.
A verdade é
que, a maioria dos estrangeiros homens que vêm ao Brasil como turistas, ou mesmo a
trabalho ou estudo (sejam russos, franceses, norte-americanos ou latinos), se desencantam
com a aparente moralidade das brasileiras, pois trazem enraizada a imagem
equivocada de que vão encontrar um país de mulheres de peitos de fora, curtindo
orgias e “swings” a cada esquina, imagem esta que o carnaval exporta para o
exterior ( na verdade, prostitutas profissionais como se fossem mulheres brasileiras do dia a dia).
Mas, como
somos “tupiniquins”, desconsideramos apenas os hermanos latinos (sem olharmos o
próprio umbigo, destratamos o terceiro mundo como se não pertencêssemos a ele, e estivéssemos, inclusive, à altura
deles), por isso a reclamação do amigo latino, pois tratamos com desprezo os
latinos, e veneramos os europeus e norte americanos, como se estes fossem “algo mais
que os latinos”, mas na verdade, todos
os turistas homens (de qualquer nacionalidade, sem exceção), nos enxergam, nós mulheres brasileiras, fêmeas
fáceis e disponíveis para sexo sem compromisso a qualquer hora, mas o
preconceito contra os latinos é gritante, o que não é tão acirrado assim contra
os demais estrangeiros (afinal, ousam dizer, estes são primeiro mundo enquanto
aqueles...).
Assim, preconceito instalado, nada conhecemos desses nossos hermanos (afinal, prá que conhecer gentalha do terceiro mundinho? dirão os preconceituosos mais radicais).
Assim, preconceito instalado, nada conhecemos desses nossos hermanos (afinal, prá que conhecer gentalha do terceiro mundinho? dirão os preconceituosos mais radicais).
Para tentar
minimizar essa imagem equivocada que temos dos hermanos de idioma espanhol, resolvi
brindar essa nova amizade “invasiva” (o apelido é pertinente, pode parecer
pejorativo mas, ao contrário, é um apelido carinhoso, uma brincadeira
relacionada à medicina, pois o então amigo é médico), com detalhes da Colômbia,
esse belo país recheado de praias (com um litoral imenso do mar do Caribe e o
do Pacífico), mas tão sofrido e isolado como o nosso, sucateado pelas ditaduras,
as guerras civis, o tráfico de drogas e as explorações das suas riquezas pelas
grandes potências.
O
aclamadíssimo escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez (“Cem anos de
solidão”), em seu belo discurso, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura na
década de 80 pelo conjunto de sua obra, comentou sobre a solidão da América Latina,
sempre excluída do cenário mundial (que, infelizmente, ainda assim o é).
Em um dos parágrafos do seu discurso, o premiado escritor diz: "A interpretação da nossa realidade a partir de esquemas alheios só contribui para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres e cada vez mais solitários".
Em um dos parágrafos do seu discurso, o premiado escritor diz: "A interpretação da nossa realidade a partir de esquemas alheios só contribui para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres e cada vez mais solitários".
E continua o
discurso, em plena guerra fria: “A América Latina não quer e não tem por que ser um peão sem rumo ou
direção, nem tem nada de quimérico que seus desígnios de independência e
originalidade se convertam em uma aspiração ocidental... como se não fosse
possível outro destino além de viver à mercê dos dois grandes donos do mundo.
Esse é, amigos, o tamanho da nossa solidão”.
Gabito (seu
apelido entre os amigos, e “O grande Gabo”, como é conhecido mundialmente), hoje
com quase 90 anos de idade e com perda de memória por demência senil, aproveitou o quanto pôde da sua fama internacional para atuar como um grande ativista pelos
direitos humanos, tentando reverter o preconceito e o isolamento da América Latina no cenário mundial.
Confesso
que até hoje não consegui terminar de ler a saga da família Buendia, dos “Cem
anos de solidão” (parei de ler nas primeiras gerações, mas já me prometi
recomeçar de novo), por conta da confusão das várias descendências com nomes
repetidos (são sete gerações ao todo, por isso me perdi na sequência, pois na época não pude ler todo o livro de uma só vez).
Trata-se de uma prazerosa leitura sobre a história fictícia e fantasiosa dos herdeiros de José Arcádio e Úrsula, moradores na também fictícia Macondo que, na verdade, retrata a verdadeira história sobre a origem da guerra civil que teve início na Colômbia com disputas políticas entre liberais, conservadores e socialistas, e que perdura até hoje, agora agravada e financiada pelo tráfico de drogas com sequestro de civis e frequentes assassinatos de políticos.
Trata-se de uma prazerosa leitura sobre a história fictícia e fantasiosa dos herdeiros de José Arcádio e Úrsula, moradores na também fictícia Macondo que, na verdade, retrata a verdadeira história sobre a origem da guerra civil que teve início na Colômbia com disputas políticas entre liberais, conservadores e socialistas, e que perdura até hoje, agora agravada e financiada pelo tráfico de drogas com sequestro de civis e frequentes assassinatos de políticos.
E claro, eu não
poderia deixar de falar do cinema colombiano. Como no Brasil, o universo
cinematográfico é modesto, e pior, muito mal distribuído por aqui, mas de vez em quando chega
até a nós bons filmes.
Sob nova
identidade, como Sebastián Marroquni, morando na Argentina, Juan Pablo Escobar (o filho do maior traficante, o colombiano Pablo Escobar, que imperou nos anos 70-90) pede perdão pelas atrocidades cometidas pelo seu
pai no documentário “Los Pecados de mi padre”, filmado em 2009, numa carta endereçada aos
filhos do ex candidato à presidência da Colômbia na época Luis Carlos Galan e
do então ex-ministro Rodrigo Lara, todos os dois políticos assassinados
brutalmente a mando do traficante, na década de 80, como inimigos políticos.
E o documentário (trailer no final do texto) termina com os órfãos enfim se conhecendo, e colocando um ponto final nessa
triste história do passado negro do cartel de Medellín da Colômbia. Mas o país
ainda sofre com as forças guerrilheiras marxistas das FARCs e as milícias de
extrema direita, que culminam em sequestros de civis e assassinatos políticos, numa guerra cruel e infindável que cada
vez mais assola e afunda o país num triste e deprimente cenário mundial.
O ator
porto-riquenho Benício Del Toro está cotado para viver Pablo Escobar no cinema, e já está em fase de filmagens iniciais. Espero que não seja mais um fiasco americano como o que transformou, há pouco tempo, num desastre cinematográfico outra famosa obra de Gabo, “Amor em tempos de cólera”, mesmo com grandes nomes de peso no elenco, como a
nossa veterana atriz Fernanda Montenegro e o espanhol Javier Bardem, ao usar o
idioma inglês com um ridículo sotaque “macarrônico” espanhol – é isso que dá
fazer filme “prá inglês ver”, ou falando no melhor do estilo macarrônico, “prá ingresver”.
O filme colombiano
“Maria cheia de graça” (trailer no final do texto) conta a história, muito comum no país, de mulheres que,
para sobreviver, se transformam nas chamadas “mulas” que carregam drogas
internacionalmente dentro do próprio corpo com todos os riscos de
tal procedimento.
Sabemos
muito pouco sobre a cultura colombiana, mas o contrário também acontece – os
turistas, que aqui chegam, só têm acesso às celulites bundais tremulantes das "cachorras" e das letras de baixo calão do ridículo funk, às musiquinhas carnavalescas da
Ivete Sangalo, às músicas do pobre diabo Michel Teló (com a desmiolada letra “ai se eu te
pego”) e do retardado Naldo (um, dois, três, quatro, alto, em cima... que
profundidade essa letra) e desconhecem nossa efervescente cultura revolucionária
que aflorou na ditadura com artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, e os
talentos mais recentes como Marisa Monte, Titãs, Adriana Calcanhoto, Paralamas do sucesso e tantos outros (vídeos no final do texto).
Desconhecem
o talento revolucionário do “Clube de esquina” do Milton Nascimento e
companhias ilimitadas (Lô Borges, Beto Guedes, Flávio Venturini, Geraldo Azevedo), em plena ditadura, burlando a censura com o
famoso “Cálice” (“cale-se”), que se confirmou na prática num show ao vivo ( até então os militares tinham liberado a música, pois não tinham
percebido a mensagem subliminar que havia por trás do “cálice de sangue”) – o
cálice significava na verdade o “cale-se”, o calar de bocas pelos militares e o sangue dos torturados nos
porões da ditadura – e em pleno show os
militares tomaram o teatro e emudeceram os microfones, consumando ao vivo, para
sempre, o cala-boca da ditadura militar.
O cinema de
Glauber Rocha foi também uma dessas manifestações contra a censura da ditadura
militar – o filme “Terra em transe” é o maior representante dessa tortura dos
subterrâneos da ditadura. Jornais como “O
pasquim” denunciavam como podiam, e o então famoso “Jornal do Brasil”, numa
tiragem histórica, colocou receitas de bolo como “notícia de primeira página”, numa verdadeira denúncia da censura no país, já que nada se podia divulgar.
Quem ouve a
letra da música “Apesar de você”, pensa inicialmente que se trata de um homem
injuriado com a traição de alguma mulher, mas foi escrita pelo Chico Buarque e também
tem toda uma mensagem subliminar por trás da aparente “letra de corno” – "hoje
você (ditadura) é quem manda, não
tem discussão ...apesar de você (da ditadura) amanhã há de ser outro dia...juro,
você vai pagar cada lágrima rolada... e esse dia há de vir antes do que você
pensa...".
Chico, para
driblar a censura, teve que adotar o pseudônimo de Julinho de Adelaide, pois os
militares então calejados, passaram a censurar toda e qualquer letra do músico pois
sabiam que tudo teria uma mensagem subliminar denunciando as torturas – a letra
da música “Acorda amor” conseguiu enganar a censura e denunciava o
desaparecimento dos cidadãos, considerados subversivos, nos porões da ditadura,
com o som da sirene da polícia ao fundo (“...acorda amor... tem gente no vão da
escada ...são os homens ...se eu demorar uns meses ... mas depois de um ano eu
não vindo, pode me esquecer... dias
desses chega a sua hora... não discuta... clame... chame o ladrão").
E termino
esse texto pela trégua entre os hermanos latinos, com o nosso poetinha Vinícius
de Moraes, que se casou nove vezes, mas foi sempre fiel às suas mulheres – “que
seja infinito, enquanto dure” (poema “Soneto da fidelidade”- veja abaixo).
As mulheres
brasileiras raramente aceitam (muitas ainda toleram e perdoam, mas jamais
aceitam) a traição, e as "cachorras" não representam nem um décimo das reais mulheres brasileiras. Ao contrário, as mulheres brasileiras em geral gostam de homens sensíveis e apaixonados, e por isso mesmo apaixonantes (Caetano em "Sozinho" mostra como é apaixonante um homem sensível e carente - vídeo abaixo).
E não há, em nenhuma região do Brasil, essas mulheres “calientes” que a mídia deixa divulgar para o estrangeiro nos vídeos-propaganda do carnaval brasileiro, e essa visão
deturpada de que existe um “vale tudo” sexual, como orgias e sexo livre no Brasil, só incentiva a prostituição infantil,
o turismo sexual e o tráfico internacional de mulheres.
Urge mudarmos esses conceitos e preconceitos (e também pré-conceitos) que existem mutuamente entre nós latino-americanos, pois só a união indistinta dos povos da nossa tão sofrida e sucateada América pode nos tirar desse total isolamento no cenário mundial que já vai muito além dos “cem anos de solidão”.
*link para o texto sobre Clarice Lispector:
http://rosemerynunescardoso.blogspot.com.br/2009/11/indecifravel-clarice-lispector.html
Urge mudarmos esses conceitos e preconceitos (e também pré-conceitos) que existem mutuamente entre nós latino-americanos, pois só a união indistinta dos povos da nossa tão sofrida e sucateada América pode nos tirar desse total isolamento no cenário mundial que já vai muito além dos “cem anos de solidão”.
*link para o texto sobre Clarice Lispector:
http://rosemerynunescardoso.blogspot.com.br/2009/11/indecifravel-clarice-lispector.html