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quinta-feira, 28 de julho de 2011

Luz, Câmera, Ação e... SOM.

Causa-me enorme estranheza quando ouço pessoas que dizem “nem notar” as músicas que rolam por trás de toda e qualquer cena cinematográfica, mas ... será que dá para imaginar o “Poderoso chefão” sem a música do italiano Nino Rota, a marca registrada de Don Corleone? Dá prá imaginar “Carruagens de fogo” sem a magistral música do grego Vangelis (que acabou virando tema de toda e qualquer maratona da atualidade)?

E "Psicose", de Hitchcock, não teria o mesmo apelo dramático e de suspense se não tivesse a clássica música que marcou para sempre a cena do chuveiro na história do cinema. E o clima futurista e sombrio de Los Angeles, sem sol e com sua chuva ácida, também se perderia sem a música de Vangelis, em "Blade runner, o caçador de andróides"(leia sobre esse filme, no blog, na "lista de filmes").

Abaixo, assista o vídeo com a divertida performance de músicos instrumentistas de uma das mais famosas músicas de filme de faroeste (no caso, o filme "O dólar furado", com o ator italiano Giuliano Gemma), que marcou a história do cinema.



E como Sansão sem os cabelos, Rock Balboa perderia toda sua "força" sem a música "Gonna fly now", que virou símbolo de desafio e conquista.  E a cena final antológica de “Cinema Paradiso” provavelmente perderia metade da comoção sem a música do italiano Ennio Morricone.

O que seria desses grandes filmes se não houvesse por trás deles o som magnífico desses grandes compositores? No cinema, só imagem causaria,
com certeza, estranhamento e desconforto assistir a uma projeção completamente muda, a não ser que fosse por “interesse histórico”.

Especialistas em audiovisual explicam que pessoas que não percebem a musicalidade por trás de uma cena cinematográfica não têm afinidade com música, e pouco conhece (ou se interessa por) ritmos, estilos, gêneros e danças.

Mas mesmo essas pessoas perceberiam a diferença se fosse retirado o som e a música dessas cenas. A imagem, qualquer que seja ela, não sobrevive sem som, fica enfadonho, a atenção à tela se esvai quando não se tem som. Pois o cinema nunca foi "totalmente" mudo, sempre teve som, mesmo nos filmes ditos mudos havia sons, em geral música incidental ou de fundo. Só não havia ainda, na época do cinema mudo, um método eficiente de sincronizar o som à imagem.

O sistema de sonorização no cinema surgiu no século XX na década de 20, com o advento de uma enorme geringonça, o famoso “vitaphone”, que tinha acoplado ao projetor uma vitrola que sincronizava o filme a um disco de 33 rotações por minuto – considerada uma revolução para a época, já que o padrão eram os discos de 78 rpm feitos de um material denominado “goma-laca” (antes da “era vinil”), tocado em gramofones, que cabia apenas uma única música – e o próprio projetor reproduziria ao mesmo tempo a imagem e o som.

E assim foi lançado o filme “The jazz singer”, pioneiro com a “nova tecnologia” em 1927, foi o primeiro filme sonoro do cinema revolucionando a indústria cinematográfica, sincronizando pela primeira vez a voz do ator com a música no filme. Al Jolson era um famoso cantor de jazz da época e fez o papel do ator principal do filme, sendo o primeiro a falar e cantar com a sua voz gravada em banda sonora sincronizada (veja no final do texto).

No filme, o cantor utiliza um tipo de espetáculo teatral tipicamente americano do início do século, que reunia quadros cômicos com dança e música, com artistas brancos maquiados como negros e com tinta branca em torno dos lábios e dos olhos, que combinava com luvas e meias também brancas, contrastando claro e escuro nos espetáculos, que produziam um divertido efeito cênico. Trinta anos depois era a vez do ator e comediante Jerry Lewis protagonizar e repetir o sucesso do filme,

e o nosso Grande Otelo também “embarcou” nesse filão e fez sucesso com sua “boneca de piche”, música de Ary Barroso (veja no final do texto). Essa apresentação tipo “black face” era conhecida na América como “Minstrel show” (veja, no final do texto, trailer do documentário "Al Jolson and The jazz singer", realizado em 2009), e com o tempo (e as lutas dos negros americanos por igualdade de direitos) passou a ser considerada de cunho racista, principalmente porque os personagens "negros" eram sempre estilizados como preguiçosos, ignorantes e falastrões.

E para comprovar que o cinema pode até existir sem imagem, mas jamais sem som, o cineasta britânico Derek Jarman produziu, em 1993, o filme "Blue", num experimento pioneiro, um filme cuja proposta audiovisual tem um resultado final no mínimo instigante. Nele o diretor propôs um filme tendo como única imagem uma tela completamente azul, desenvolvendo a narrativa apenas por meio da trilha sonora. Assim, o som é dado como único elemento narrativo do filme, e é o espectador, em sua subjetividade, que projeta as imagens a partir da narrativa sonora.

Trata-se de uma espécie de relato das experiências e reflexões do autor, o próprio cineasta, enquanto homossexual e aidético em fase terminal. Ao longo de mais de sessenta minutos, a única perspectiva visual é uma tela monocromática azul. Tal estaticidade visual confere à trilha sonora toda função narrativa, seja pelos diálogos (na verdade praticamente monólogo) ou pelos sons e ruídos.

"Blue" conta a história do próprio cineasta que, desprendendo-se da dependência das imagens, desenvolveu sua idéia de fazer um filme sobre sua própria luta contra a AIDS em seu estado terminal (e já cego), representado apenas através de sons e de uma trilha musical que transpõe o seu estado interior. Como o único elemento visual no decorrer do filme é a tela completamente azul, são os elementos sonoros que dão dinâmica ao filme.

Dentro da proposta de Derek Jarman, seu filme não é para ser escutado e sim para ser visto (caso contrário poderia ser considerado uma espécie de narrativa "radialística", o que realmente não é), assim o autor usa a tela azul desejando evocar ou expressar um sentimento sublime, relacionado ao azul do céu ou do mar, sugerindo que o telespectador se concentre no azul da tela enquanto percebe os sons e a musicalidade do seu filme (veja no final do texto).

A tela azul remete a cegueira experimentada pelo cineasta e denota a idéia da "cegueira" do mundo em relação à condição do personagem, homossexual, soro positivo, que está morrendo por complicações da AIDS. Além disso, a não exposição ao visual, ou melhor, a exposição visual a uma tela azul (sempre de um só tom de azul) leva o espectador a um tipo de escuta diferenciado.

Jarman conseguiu ao mesmo tempo realizar uma experiência sonora (e visual) diferente e inovadora. Sons e palavras conseguem retratar a agonia de um doente em fase terminal e que só lhe resta tentar achar um sentido para a sua morte. Uma trilha sonora que acaba prendendo a atenção do telespectador e os levando a campos do imaginário nunca antes conseguido. Jarman faleceu um ano após a conclusão do filme.

O crítico de cinema e compositor de música concreta Michel Chion é certamente um dos teóricos que mais estudou sobre as relações entre som e imagem. Escreveu uma série de livros sobre esse assunto, sendo um dos mais  importantes “La Musique au Cinema”. Como afirma Chion: “Durante a fruição de um filme, existe uma mistura dos elementos visuais e sonoros que resultam no filme, num conjunto, sendo muito difícil assistir e discernir, simultaneamente, qual parte é qual, principalmente quando se está tendo um primeiro contato com a obra, de tal forma que, raríssimas vezes, levamos em conta o sonoro especificamente”.

“Musicalizar-se” é preciso, pois a música e a dança são capazes de preencher o vazio das almas. A música atua praticamente como testemunha viva, cuja função é despertar ou intensificar lembranças de qualquer natureza. Nos dias de hoje pode-se dizer que a trilha sonora é essencial para a compreensão e desenvolvimento de um filme.

Aguçar o ouvido e refinar a natural sensibilidade musical é preciso. E para isso, nada melhor que começar com “Rapsody in blue” do famoso compositor estadunidense George Gershwin, que Woody Allen usa magistralmente na abertura de “Manhattan” (veja no final do texto, e leia sobre esse ótimo filme no blog, na "lista de filmes" do Woody Allen),

ou então fique com a música divina do compositor italiano Ennio Morricone, no inesquecível filme “Era uma vez na América” (“Once upon a time in America”) com Robert de Niro, James Woods, Joe Pesci, Elizabeth McGovern e Jennifer Connelly ainda bem menina. 

Abaixo, veja como a música pode ser a personagem principal, na performance mímica de um ator comediante (no caso, a música "Fico assim sem você" da Adriana Calcanhoto).























sexta-feira, 15 de julho de 2011

Eternamente Ingmar Bergman

Ingmar Bergman – um único nome, mas que resume todo o cinema sueco. Se houvesse outro cineasta sueco reconhecido internacionalmente, talvez sua obra fosse provavelmente ofuscada pela extensa e magnífica obra deste que foi um dos maiores nomes do cinema mundial. Bergman dirigiu mais de 60 longas-metragens, uma média incrível de um filme por ano, uma das mais extraordinárias e prolíficas carreiras da história do cinema, com incontáveis prêmios em praticamente todos os festivais de cinema de renome mundial.

Ingmar Bergman ganhou notoriedade, e o mundo se voltou para o cinema sueco, quando pela primeira vez, nos anos 50, o cineasta se apresentou como o grande desbravador de algo que até então o cinema jamais tinha visto – a representação visual e sonora da “paisagem” (e a desolação) da alma humana.

O legado de Bergman é único: com ele, o cinema deixou de ser só entretenimento (até então o universo do cinema eram os épicos, os westerns, as comédias e os musicais românticos) e entrou definitivamente para os cânones da arte. 

O cinema, depois de Bergman, tornou-se tão profundo e estarrecedor como qualquer outra manifestação artística, ao misturar nos seus filmes literatura, teatro e pintura, fazendo jus ao título de “a sétima arte” (termo criado pelo crítico de cinema italiano Riccioto Canudo, no início do século XX, no “Manifesto das Sete Artes”).

Em sua autobiografia intitulada “Lanterna Mágica”, escrita na década de 80, o cineasta aborda todos os seus laços de família em detalhadas referências pessoais, e nesses dolorosos e confessos relatos encontramos todos os temas e significados contidos em seus filmes. A sua vida está toda ela entroncada e emaranhada em sua cinematografia, não há como separar uma da outra. Para Bergman a arte, a obra e a vida são uma mesma e única coisa.

Para entender seus filmes (repletos de poesia e de encantamento, de coragem e determinação, mas também cheio de dúvidas da existência humana e divina, e de dores e solidão), é preciso entender a sua vida, suas paixões e seus temores, pois todos estão lá, sem exceção, em todas as suas obras cinematográficas. Bergman se enveredava por dentro da alma das mulheres (seus filmes são repletos delas) e sentia pena da solidão e da frieza masculina. Amava rostos, gestos e expressões, e considerava o ator a peça fundamental e visceral dos seus filmes.

Palavras de Bergman sobre seu filme testamento "Fanny and Alexander": "O privilégio da infância é podermos transitar livremente entre a magia da vida e os mingaus de aveia, entre um medo desmesurado e uma alegria sem limites... eu sentia dificuldades para distinguir entre o que era imaginado e o que era real".



Escrito em saltos cronológicos sucessivos, o livro “Lanterna Mágica” (nome do engenhoso cinematógrafo que ganhou, quando ainda menino, numa troca de brinquedos com o irmão) é repleto de recordações de infância, sonhos e episódios aparentemente soltos. Filho de um pastor luterano, carismático no púlpito, mas severo em casa (que impunha castigos terríveis aos filhos) e uma mãe de sentimentos instáveis (que variavam entre ternura e frieza), ele teve uma infância conturbada e solitária.



Ingmar Bergman teve uma educação religiosa austera e rígida, em que conceito como pecado, castigo, confissão, perdão e indulgência estavam sempre presentes.  O livro é o resumo de uma vida dedicada à imagem, bem como de uma constante transfiguração de motivos pessoais e mágicos, mas sempre, sempre dolorosos.

Desse modo, encontramos ao longo das páginas de “Lanterna Mágica”, o retrato complexo e severo do pai pastor, e o retrato magoado da mãe, feito a partir de fotografias. A sua iniciação sexual e os seus problemas de saúde. Os casamentos (foram cinco no total, teve nove filhos, tendo três deles se tornado diretores, outros três são atores) e infidelidades. A paixão pelo teatro realista de Henrik Ibsen e August Strindberg (antes de se enveredar pelo cinema, Bergman era um dramaturgo, escrevia peças de teatro – na verdade, ele nunca abandonou essa atividade – e tinha esses autores nórdicos como suas referências literárias).

Nas páginas da sua autobiografia, está também o incessante “embate” com Deus (embora se declarasse ateu, Bergman utilizava a criação artística para exorcizar a culpa por negar uma divindade silenciosa que, no íntimo, não conseguia abandonar por completo). As simpatias da família pelo nacional-socialismo. O elogio a Andrei Tarkovsky (premiado cineasta russo, autor de “A infância de Ivan”) a quem considerava o maior de todos os cineastas.

Em "Lanternas Mágicas" está também registrada a sua devoção ao mestre Victor Sjostrom (ator e também cineasta sueco  autor da primeira adaptação para o cinema de "A letra escarlate", mas por aqui ficou conhecida a versão estadunidense com a atriz Demi Moore) a quem Bergman tinha grande afeição e agradecimento, pois sua entrada no mundo do cinema deu-se através de Sjöstrom, e mais tarde Bergman convidou-o para protagonizar o premiado “Morangos Silvestres”. A eterna musa Liv Ullmann (atriz protagonista de muitos dos seus filmes e uma de suas ex-esposas).

Bergman faleceu em 2007 com quase 90 anos de idade, na ilha de Faro, onde vivia há anos, recluso e isolado de tudo e de todos, inclusive familiares, desde a morte da sua última esposa. Ingmar Bergman queria, com suas obras, “capturar sonhos” e baseou toda a sua cinematografia em questões existencialistas como a morte, a solidão, o desejo e a fé (ou a falta de), e morreu achando ter fracassado na missão a que se impôs.

A ilha onde se encontrava recluso foi palco de um documentário na década de 60/70, produzido pelo próprio Ingmar Bergman, intitulado “Fårodökument”, onde ele traça um retrato sociológico da ilha escandinava chamada Faro (que significa ilha das ovelhas), no mar Báltico, no sudeste da Suécia, ao lado de Estocolmo. Bergman era fascinado pelos extremos no clima da ilha, que vai de um frio insuportável e praticamente inabitável durante o inverno, mas bastante suave e agradável no verão.

Por mais diferentes que fossem suas obras, porém, todas perseguiam um só objetivo: o cineasta queria registrar sensações e epifanias (no sentido mais filosófico e literal possível). Filmar o abismo que há entre as pessoas. Filmar o silêncio de Deus. E justamente por achar que não conseguiu registrar o que queria é que Bergman não se considerava um dos grandes cineastas de seu tempo (embora admitisse ter feito alguns “bons filmes” – os seus prediletos eram “Gritos e Sussurros”, “O Sétimo Selo” e “Sorrisos de Uma Noite de Verão”).

Especialistas no cinema de Ingmar Bergman costumam dividir os seus filmes em duas grandes fases. A primeira, ainda na década de 50, é fortemente marcada pela religião e pelo medo da morte, num enfoque existencialista, numa angustiada busca pelo sentido da vida.

Os maiores representantes desse período são “O Sétimo Selo” – inesquecível a cena antológica do cavaleiro medieval que literalmente joga xadrez com a Morte para tentar salvar a própria vida (o título é uma remissão ao livro bíblico denominado Apocalipse, pois segundo esta escritura, na mão de Deus há um livro selado com sete selos, e a abertura de cada um destes selos implica num malefício sobre a humanidade, mas a abertura do sétimo é o que leva efetivamente ao fim dos tempos).

E também “Morangos Silvestres” (um renomado professor de medicina que, perturbado pela eminência da morte, se envereda pelo seu passado rememorando e questionando suas escolhas e relações pessoais). Nessas obras, Bergman debatia a fé. Em ambas, tentava responder uma das perguntas-chave do século 20: se Deus realmente existe, por que não se comunica, por que se cala diante de tantas atrocidades e injustiças?

Já a segunda fase de Bergman, começa a partir do início dos anos 60, justamente na época em que foi morar na bucólica ilha de Faro, o foco de interesse do cineasta mudou. Agora, ele não se dedicava mais a perscrutar a distância entre os homens e Deus, mas questionava agora a distância entre os próprios homens, numa abordagem sobre os problemas suscitados pelos relacionamentos humanos.

São dessa época obras-primas como “Gritos e Sussurros” (três irmãs “unidas” pelo leito da morte que ronda a casa da família, e que faz vir a tona amores, paixões e ódio, muito ódio), e a sua eterna “ode às mulheres – mais uma vez, uma cena antológica – em um cenário repleto de paredes e tapetes “vermelho sangue”, uma mulher mutila o próprio sexo, com um caco de vidro de uma taça quebrada, para não ter relações com o marido.

“Persona”, com Liv Ullman e Bibi Anderson, foi considerada a mais ousada experiência cinematográfica do diretor sueco. O título “Persona” vem do nome da máscara que os atores do teatro grego usavam na antiguidade e que, por extensão, designa um papel social (ou um papel interpretado por um ator) e as várias personalidades que existem por trás do psique do ser humano e qual máscara usamos para nos apresentamos ao mundo – duas mulheres, uma atriz e sua enfermeira, numa relação camaleônica, simbiótica, ora “irmãs”, ora “amantes”, ora “mãe e filha”, um resumo belíssimo do painel sobre solidão e estilhaço de personalidades, construído pelo diretor sueco, numa das cenas em que as duas mulheres em frente ao espelho, entrelaçando os pescoços, como se fossem duas cabeças habitando um mesmo corpo, como se a todo tempo uma perfurasse e invadisse a outra).

“Cenas de Um Casamento” sobre a derrocada lenta e sofrida de um casal em crise e “Sonata de Outono”, na história de mãe e filha que se digladiam até a morte. Nessas obras-primas, o cineasta tentava compreender a solidão, e o abismo entre falar, ouvir e escutar o outro.

Mas Bergman não era só pessimismo, como pode parecer aos desavisados, são seus também Sorrisos de uma noite de amorO olho do diabo e Para não falar de todas essas mulheres que são de um humor surpreendentes, mostrando assim seus múltiplos talentos, apesar de sempre ser lembrado por suas obsessões, com temas intrínsecos à existência humana como a morte, desejos e religiosidade.

E finalmente “Fanny and Alexander” (Oscar e Globo de ouro de melhor filme estrangeiro de 1983, além de fotografia, figurino e direção de arte), onde o diretor rememora sua própria infância e os seus próprios demônios pessoais quem quiser conhecer a extensa obra desse magnífico cineasta, recomenda-se começar por esta que é considerada sua “obra testamento” (e seu último filme para o cinema), um profundo mergulho sobre a alma humana, com seus temores, enigmas e prazeres enraizados na memória de uma criança – a  bela história do menino Alexander (o alter ego de Bergman) e sua irmã Fanny, no início do século XX, às voltas com sua família problemática e seus fantasmas de infância, num misto de magia, humor e sensibilidade, em meio a cenários deslumbrantes e instantes mágicos.

Belo, comovente, poético, emocionante, onírico, sensível, tocante, mágico, lírico ... ufa, haja adjetivos, infindáveis adjetivos..., e ainda assim elogios insuficientes para essa verdadeira obra prima (prepare-se, Fanny and Alexander tem três horas de duração, mas nem se percebe o tempo passar).

Mais e mais Bergman (são mais de 60 títulos) – “O ovo da serpente” (uma profunda reflexão sobre a ascensão do nazismo)A paixão de Ana, "A hora do lobo, “Monika e o Desejo”, “A flauta mágica”, “Face a face” (no final do texto, trailer de alguns dos filmes e entrevistas com o diretor)  Saraband (último filme para a TV, em 2003, uma continuação trinta anos depois, de "Cenas de um casamento").

E para terminar – Bergman resumiu, num parágrafo, tudo o que o cinema representou para ele como cineasta, e claro, também para nós, cinéfilos: “Cinema é como um sonho, como uma música. Nenhuma arte perpassa a nossa consciência da forma como um filme faz: vai diretamente até nossos sentimentos, atingindo a profundidade dos quartos obscuros de nossa alma”.





















quinta-feira, 7 de julho de 2011

O sexo no cinema europeu

O tema “sexo”, no cinema europeu, é sempre mostrado numa abordagem muito diferente daquela que estamos acostumados a ver no cinema norte-americano, qualquer que seja essa a abordagem, seja sob um olhar heterossexual, homossexual, ou mesmo incestuoso. 

O americano padrão é (falsamente) puritano, e o cinema tradicional estadunidense em geral mostra o sexo como um mal, um pecado onde “o salário muitas vezes é a morte”, quase uma premonição, para o espectador, do tipo “se fizer sexo fora do usual e do casamento, serás um pecador condenado ao inferno e à morte”, e as mulheres, “prá variar”, são quase sempre a personificação deste mal – exemplos clássicos: “Atração fatal”, “Instinto selvagem”("Basic Instint"), “Corpos ardentes”("Body Heat"). Mas nos últimos anos, o cinema americano ganhou maturidade e já faz belos filmes sem o ranço do preconceito, como o sensível “O segredo de Brokeback mountain” (se bem que aqui, teve a parceria do cinema liberal canadense e a direção do cineasta chinês radicado na América, Ang Lee).

O cinema europeu, ao contrário, trata de temas indigestos, ligados a relacionamentos sexuais conflituosos, com uma sensibilidade e uma delicadeza apaixonante, sem culpas ou acusações, em geral é o próprio espectador que tirará seus conceitos do que acabará de assistir. Assim, para ficar a par do belo, intimista e inovador cinema europeu, continuo a “série”, falando agora de alguns clássicos do majestoso cinema italiano e alguns dos seus grandes representantes – Bernardo Bertolucci, Frederico Fellini, Michelangelo Antonioni, Vittorio de Sica, Lucchino Visconti, Giuseppe Tornatori (“Cinema Paradiso”, minha paixão eterna e etérea), Gabrielle Salvatori (“Mediterrâneo”) e Ettore Scola (“O baile” e “Nós que nos amávamos tanto”)*.

Bernardo Bertolucci ficou consagrado em seu país, a Itália, e ganhou notoriedade quando escandalizou o mundo inteiro com seu “Último tango em Paris” na década de 70 – o mundo, e principalmente a América conservadora, não estava preparada para tanto sexo (quase) explícito para a época, num filme clássico, não pornográfico. Ousado, o cineasta continua na ativa, com filmes de uma versatilidade extraordinária, cada vez nos surpreendendo com seus temas variados, que vão desde biografias a temas sobre sentimentos e relacionamentos conflituosos, com roteiros sempre inteligentes e movimentos de câmera sofisticados.

Além do "Tango em Paris", Bertolucci lançou “La luna” e depois sedimentou sua fama no mundo, com a bela e envolvente fotografia da magistral mega-produção “O último imperador” (sobre os dias do último imperador da China e o início da República naquele país), arrematando vários Oscars, incluindo melhor filme e melhor diretor, na década de 80, e daí não parou mais – prá citar só alguns: “O céu que nos protege”, “O pequeno Buda”, “Beleza roubada”, “Assédio” e o mais recente “Os sonhadores”.

“La luna” foi filmado na virada da década de 70/80, e é considerada a obra mais polêmica e obscura de sua carreira, abordando o tema incesto num drama intimista e comovente. Uma cantora de ópera temperamental (a atriz Jill Clayburgh, no papel mais instigante e desafiador da sua carreira), com problemas com o filho desde a morte do marido, se muda de Nova York para a Itália a trabalho, e assiste o declínio de seu filho no mundo das drogas, e quando tenta externar o seu amor pelo adolescente, numa tentativa de reaproximação visando livrá-lo da heroína, se vê envolvida numa relação de incesto com o filho, esfacelando assim seus laços afetivos. O diretor consegue ser, apesar do tema e das cenas de sexo, incrivelmente delicado e sensível, numa montagem belíssima, sendo por isso considerado por muitos “o poeta das imagens”. A trilha do filme mistura óperas com clássicos pop, como “Night Fever” dos Bee Gees e a canção italiana San tropez Twist, de Peppino di Capri (veja no final do texto).

Em “Os sonhadores”, Bertolucci usa como pano de fundo a cidade de Paris dos revolucionários anos 60, com seu tumultuado cenário político no ano de 1968, para contar a história de três jovens estudantes atraídos pela paixão por cinema, um casal de irmãos franceses que recebe um jovem americano (o ator e músico americano Michael Pitt, o mesmo de “Last days”)* fazendo intercâmbio na Universidade de Paris, e acabam se envolvendo numa ardente relação a três. 

Com cenas de nudez, sexo e incesto, filmadas em longas tomadas, como sempre o diretor consegue realizar um belo filme, abordando novamente assuntos delicados, com tamanha sutileza e sensibilidade, ao som de “Hey, Joe” (canção imortalizada por Jimmy Hendrix, mas no filme é o próprio Michael Pitt quem canta a música - veja no fim do texto, o “making of” do filme, com o ator/cantor e o diretor no ensaio da mesma), canção cuja letra combina com o turbilhão de sentimentos conflitantes dos personagens do filme. Temas difíceis de digerir é verdade, mas... Bertolucci é Bertolucci.

O consagrado diretor italiano Michelangelo Antonioni e seu inesquecível “Blow up”, (no Brasil “Depois daquele beijo”), da década de 60 - a história de um fotógrafo inglês que vive num mundo materialista, e que trata as pessoas apenas como imagens, é um prato perfeito para a genialidade e a câmera de Antonioni. O diretor consegue, com os seus enquadramentos, nos levar ao âmago da profissão do protagonista, ao construir cenas cinematograficamente perfeitas, como no momento em que o tal sujeito faz fotos para um editorial de moda em seu estúdio, em que várias modelos posam simetricamente separadas, enquanto algumas paredes de vidro dividem o cenário, refletindo a imagem delas. Genial.

O tal fotógrafo, durante uma tomada de fotos num parque londrino, fica intrigado com um casal furtivo (a mulher, a atriz Vanessa Redgrave em início de carreira) e começa a filmá-los e acaba documentando acidentalmente um assassinato, e a história irá se desenrolar em cenas recheadas de sensualidade, nudez e suspense, tendo como pano de fundo a chamada “rag week” (semana em que estudantes de várias universidades britânicas, angariam anualmente dinheiro para caridade, através de várias atividades divertidas), presente em quase todos os momentos da película, inclusive na cena final, e que traz um encanto a mais no contexto geral do filme.

Como curiosidade interessante do filme, temos a aparição da banda de blues-rock dos anos 60, “The Yardbirds”, tocando “Stroll on”, numa das cenas em um bar (veja no final do texto), com um dos componentes da banda, o então (quase) desconhecido guitarrista Jimmy Page, que mais tarde formaria a futura banda “Led Zeppelin” com o vocalista Robert Plant. No filme, vemos também o guitarrista Jeff Beck participando da cena, destruindo a guitarra e os amplificadores de som (na época, o futuro “bluesman” Eric Clapton já havia deixado o grupo, pois como purista do blues ficou descontente com os caminhos que a banda tomava pelo universo pop) - veja no final do texto, a evolução do som da banda "The Yardbirds", pré e pós Eric Clapton, até virar "Led Zeppelin".

O mestre do cinema italiano, o cineasta Vittorio De Sica foi um dos que mais influenciou gerações e gerações de novos diretores - Oscar de melhor filme estrangeiro na década de 50, “Ladrões de bicicletas” é um clássico em preto e branco, um retrato fiel da Europa pós-guerra com o desemprego rondando as vidas, e levando italianos à desesperança e ao desespero. O diretor lança mão de atores não profissionais, para mostrar como os italianos comuns se sentiam na época do pós-guerra com a situação catastrófica da economia italiana, e o enorme contingente de proletários desempregados e marginalizados.

“Ladrões de bicicletas” é um filme singelo (não há como não se emocionar com o menino e seu pai em busca da bicicleta que seria o diferencial entre morrer de fome ou ter uma vida digna) e o diretor com sua sensibilidade com a câmera captou esse sentimento com belas imagens e uma bela trilha sonora instrumental que acompanha todo o filme. Já em “Girassóis da Rússia”, o clássico romântico do diretor, tornou-se um dos maiores sucessos da dupla Sophia Loren e Marcello Mastroianni. Emocione-se com a história de um casal separado pela Segunda Guerra. Após anos sem notícias, ela viaja para a Rússia em busca do marido, atravessando cidades e campos de girassóis. Quando enfim ela o encontra, percebe que algo mudou entre eles. Com a música inesquecível do grande compositor estadunidense Henry Mancini, “Os Girassóis da Rússia” é um filme indispensável para os amantes do cinema.

Para saber mais sobre esse gênio neo-realista do cinema italiano (que começou a carreira inicialmente como ator), assista o documentário “Vittorio de Sica: minha vida, meus amores” (trailer no final do texto), com vários depoimentos de amigos e colegas de profissão, entre eles Woody Allen, Clint Eastwood e Ettore Scola.

Frederico Fellini, assim como Vittorio de Sica,  ainda influencia até os dias de hoje os seus contemporâneos (são seus seguidores fiéis, o Woody Allen, Almodóvar, Martin Scorsese), ficando eternizado pela extrema poesia contida em todos os seus filmes, sem exceção, mesmo quando o tema girava em torno de críticas à sociedade, como em “La dolce vita”(*). Filmou os clássicos “Amarcord”, Fellini 8 e meio”, “E la nave va”, “Roma” de Fellini, “Casanova”, entre tantos outros.

O título “Amarcord” refere-se à expressão fonética da frase “eu me recordo”, num dialeto falado numa região específica da Itália, e Fellini nesse filme faz uma semi-autobiografia da sua vida (mesmo que ele negasse isso) desde a infância, passando pela sua vida familiar, sua educação, sua influência religiosa e política dos anos 30 (época da ascensão do fascismo), através da visão de vários personagens, ora simpáticos ora bizarros, que passaram por sua vida, sem obedecer a nenhuma cronologia (talvez porque, para uma criança, a vida é atemporal e o tempo não conta), mas sempre com uma grande dose de generosidade e afeto pelos seus personagens, ao som do grande compositor italiano Nino Rota.

O prestigiado diretor Lucchino Visconti, dentre tantos filmes premiados (“O leopardo” com o eterno galã Alain Delon, “Noites brancas” com Marcello Mastroiani e “Rocco e seus irmãos”, também com Alain Delon), filmou, na década de 60, a bela adaptação do livro homônimo de Thomas Mann, “Morte em Veneza”, que se passa no início do século XX, e conta a história de um virtuoso músico (no livro, um escritor) de meia-idade, de férias em Veneza, em crise existencial e pessoal, que desenvolve uma “paixão” platônica por um jovem púbere, de uma rara beleza quase andrógina (“mal comparando”, lembra a história do “Retrato de Dorian Gray”, pois a atração do músico não está exatamente na carne, numa relação homossexual, e sim na forma idealizada de beleza que o protagonista já não vê mais em si mesmo, o viço da juventude que se foi com a idade, deixando no seu corpo envelhecido a certeza de que o fim estaria próximo).

Na bela Veneza tomada pela peste, os longos zooms de Visconti mostram o processo de decadência e introspecção cada vez maior do músico, que sequer um dia ousou dirigir a palavra ao seu “amado”. A câmera vai e vem, se esgueirando pelas ruelas da cidade, tornando-se cúmplice do protagonista, que se torna escravo do olhar platônico, num esforço perfeccionista para ver seu objeto de prazer (o belo ator sueco de nome Björn Andrésen - veja no final do texto, “making of” do filme com o diretor e o então jovem ator), e o diretor demonstra, com as belas fotografias e a bela música de fundo, o grande amor que nutre pelos personagens dos seus filmes. Esse é o grande trunfo do cinema europeu, não há julgamento pré-concebido, como no cinema americano, os personagens são vistos como seres humanos (com seus defeitos e qualidades, seus sentimentos e relacionamentos, conflituosos ou não), e como diria Nietzsche, “humanos, demasiadamente humanos”.

A lista não pára, mas o texto se alonga demais, por isso fico por aqui – deixo a lembrança do sensível e comovente “O quarto do filho” de Nani Moretti (com o próprio diretor no papel principal), do clássico “Roma, cidade aberta” de Roberto Rosselini, e do premiado “A vida é bela” de Roberto Begnini, e uma curiosidade que muitos desconhecem, o belo “Perfume de mulher” (*filme estadunidense com Al Pacino, no papel de um militar cego e depressivo) é na verdade, baseado no roteiro do filme italiano de mesmo nome, do diretor Dino Risi, rodado na década de 70, com o ator Vittorio Gassman.

*Textos e trailers sobre os filmes citados em parênteses podem ser encontrados no blog, nos links abaixo.
http://rosemerynunescardoso.blogspot.com.br/2011/05/cinema-europeu-uma-pincelada-para.html
http://rosemerynunescardoso.blogspot.com.br/2010/12/filmes-em-3d-ame-o-ou-deixe-o.html
http://rosemerynunescardoso.blogspot.com.br/2009/10/cinema-paradiso.html
http://rosemerynunescardoso.blogspot.com.br/2010/06/recordar-e-viver.html























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