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sábado, 19 de fevereiro de 2011

A burocracia da má vontade

Sempre que leio sobre (ou me deparo com) burocracia nos setores públicos, percebo que ela está intimamente ligada à má vontade dos servidores públicos, em suas repartições, em “agilizar” os processos da pior maneira possível, quaisquer que sejam eles. Mas ouvi recentemente, no meu trabalho (quando diante desses empecilhos burocráticos que a gente infelizmente se esbarra também na área de saúde), uma frase que resume e traduz exatamente o que impera (e emperra) esse nosso país – “a burocracia da má vontade” – essa frase realmente diz tudo.

Burocracia, em nossa bela língua nacional, é uma corruptela de uma palavra francesa chamada “bureau” que significa “escritório” (bureaucratie em francês e bureaucracy em inglês) – em francês se pronuncia “birrô”, mas no Brasil temos a mania de pronunciar o U francês com som de U mesmo, daí foi um passo para se criar o termo pejorativo (e labiríntico) chamado “burrocracia” fazendo relação direta com o famigerado animal.

Isso porque não há diálogo possível entre burocracia e a inteligência e o bom senso. Enquanto estes vão direto ao assunto, o analisam com a lógica necessária e o concluem, aquela se perde por vezes em devaneios burros e idiotas, fazem curvas e mais curvas desnecessárias, voltam ao mesmo ponto, e chega sempre atrasada. É sempre um estorvo, um monstrengo que, feio e torto, se move lento, com dificuldade, obstruindo os caminhos de quem tem o direito de ir e vir, com a agilidade que desejar.

Na verdade, segundo o sociólogo alemão Marx Weber, a burocracia é (ou pelo menos deveria ser) uma forma de organização que se baseia na racionalidade, isto é, na adequação dos meios aos objetivos (fins) pretendidos, a fim de garantir a máxima eficiência possível no alcance dos objetivos.

E seria vital nas organizações, onde o crescente tamanho e complexidade das empresas, a partir dos anos 40, passaram a exigir modelos organizacionais bem mais definidos.

Todavia, ao estudar as conseqüências previstas (ou desejadas) da burocracia que a conduzem à máxima eficiência, o sociólogo notou também as conseqüências imprevistas (ou indesejadas) e que a levam à ineficiência e às imperfeições. A estas conseqüências imprevistas, deu-se o nome de disfunções da burocracia, para designar as anomalias de funcionamento responsáveis pelo sentido pejorativo que o termo burocracia adquiriu junto aos leigos no assunto.
A aplicação incorreta da burocracia leva ao burocratismo. Isto pode ser visto quando são criadas mais regras do que as necessárias para que o processo funcione bem e seja controlado. Também vemos burocratismo quando se abre espaço para intermediários que se especializam no tráfico de influência para liberar o que nos é de direito.

O leigo passou a dar o nome de burocracia aos defeitos do sistema (na verdade seria burocratismo, ou mais bem definido pelo leigo, burrocratismo). Segundo o conceito popular, a “burrocracia” é geralmente vista como uma empresa, repartição ou organização onde o papelório é imenso e se avoluma a olhos vistos, impedindo as soluções rápidas e eficientes. Além de ser onerosa, lenta e perdulária, a burocracia, do jeito deturpado que ela funciona hoje, prima em irritar aos que dela dependem. Irritam pela demora além do razoável para solucionar as questões, pela incompetência e má vontade de alguns de seus protagonistas, pelo desrespeito aos direitos dos cidadãos. Fora os constrangimentos abusivos que essa megera traz para nosso cotidiano: atestados que atesta o óbvio, documentos em demasia, reconhecimento de firma, carimbos em profusão e assim por diante.

E por mais que se tente, que todo mundo reclame, fale mal e a amaldiçoe, lá está ela, a burocracia esta aí no nosso dia a dia, sempre em três vias, autenticadas, e óbvio, com firma reconhecida. O termo é empregado também com o sentido de apego dos funcionários aos regulamentos e rotinas (em geral existe um chefe medíocre, idiota e tirano por trás desses funcionários), causando ineficiência à organização.

Se o entrave prejudica o país como um todo, imagina dentro do sistema de saúde, onde muitas vezes a vida de um ser humano está em jogo. A má vontade em resolver problemas (no caso cruciais para o paciente) faz com que se criem mecanismos burrocráticos cada vez mais lentos para se adiar o processo. Parece que o lema dessa gente ordinária é: “deixe para amanhã o que você pode fazer hoje, talvez amanhã você não precise fazê-lo, pois algum otário acabará fazendo prá você”.

Me deparo frequentemente com tais “burrocratas da má vontade” no meu dia a dia – por exemplo, o pedido de um determinado exame de um paciente (mesmo em estado crítico) do setor de Unidade Intensiva Cardiológica de um hospital público onde trabalho, deve chegar a um determinado setor em questão impreterivelmente (burocraticamente falando) antes das 8 h da manhã – eu juro que não denuncio de qual setor a que me refiro, o setor de ecocardiografia (ops, falha nossa) – só que nunca o tal setor está aberto antes desse horário, assim retorna-se ao famigerado setor depois das 8 h, e o que se ouve do mau caráter do chefe do setor, como resposta: “sinto muito, mas o pedido chegou depois das 8h (detalhe, chegou no máximo às 8:15h) e não mais poderá ser mais atendido hoje”. What???? “Ok, mau-caráter, você venceu, então marque para amanhã” – e óbvio, senão não seria “burrocracia da má vontade”, o pedido fica no tal setor, e no dia seguinte, simplesmente deu-se cabo dele, simplesmente some e ninguém se responsabiliza pelo mesmo, por mais que haja um livro de protocolo de entrega do mesmo.

E o exame desse chefe mau caráter da medicina prima pela negligência e amadorismo (e uma incompetência de dar dó), a ponto de certa vez um colega me perguntar: O que faço com esse laudo que pouco ou nada esclarece? E ele mesmo, irônico, me interroga: posso dar para o paciente usar como papel higiênico?? Ao que respondi: sinto, mas já é muito sofrimento para o paciente receber um laudo ridículo desse, portanto não deveria ser ainda penalizado com um papel higiênico tão áspero como será o uso desse.

Faço exames em outro setor do mesmo hospital, e há poucos dias um pedido de exame erroneamente solicitado veio parar na minha mão, e ao me deparar com o erro (alertado pelo próprio paciente), eu poderia (como faz o burrocrata cretino do setor acima citado), ter devolvido o famigerado paciente, alegando que não poderia fazer o exame já que foi solicitado errado – porém como não sou adepta a cretinices, entrei em contato com o setor que solicitou o tal exame erroneamente, e checado qual era o real exame necessário, em meia hora o exame estava pronto, datilografado, assinado e liberado para o paciente, um exame cujo transtorno foi criado, e se o mesmo não fosse realizado, adiaria a cirurgia cardíaca daquele paciente então programada para aquela semana.

“Brazil, o filme”, de 1985, do complexo diretor Terry Gilliam (de “Os 12 macacos” e a comédia “Monthy Python em busca do cálice sagrado”), é uma ficção científica futurista e fantasiosa (veja trailer no final do texto) – o filme é sobre uma sociedade estranhíssima, infeliz e depressiva, e altamente alienada por, nada mais nada menos, muita burocracia. E tome de burocracia. Os personagens lidam com milhares de papéis, num ambiente extremamente intoxicado e claustrofóbico (liderados como sempre por um chefe cretino), e que apesar de toda a papelada exigida (e talvez por causa da abundância dela) um funcionário acaba, acidentalmente, cometendo um erro de cadastro.

Por causa do erro, um fugitivo da polícia acaba tendo seu nome trocado por outro bem parecido, e por causa de tal incidente, um cidadão pacato e inocente acaba sendo preso no lugar do fugitivo. O tal fugitivo é interpretado por Robert De Niro, em um papel pra lá de estranho. Aliás, “Brazil - o filme” é uma obra-prima estranha, difícil de assistir e de digerir. O clima do filme é escuro, depressivo, claustrofóbico. O mundo é um completo caos. E a única referência ao “Brazil” no filme é apenas a trilha sonora, a música-tema do filme é a “Aquarela do Brasil”, clássico composto por Ary Barroso.

Prá descontrair, o quadrinho “Dilbert” (o personagem é baseado nas experiências do próprio autor, o norte-americano Scott Adams) é um funcionário de uma grande empresa, e suas histórias retratam o cotidiano do mundo dos negócios da maneira mais realista e sarcástica possível. As burocracias inúteis, os chefes burros e torturadores (me lembra o tal chefe do meu famigerado hospital público), os tecnocratas e os preguiçosos, enfim, todos os tipos comuns que vemos ou com que lidamos no dia a dia de nossos próprios empregos são retratados nas tirinhas de maneira magistral (veja abaixo, trecho da série em quadrinhos satirizando a profissão de engenheiro).

E voltando a “brincadeira” de mau gosto que é a “burrocracia da má vontade”, o que realmente me irrita é o número de pessoas do bem (como o colega que recebeu o exame que viraria papel higiênico) que simplesmente age como Pilatos e “lava a mãos”, não querendo “sujá-las” com tais cretinices burrocráticas, se esquecendo que o silêncio só ajuda a proliferar esses maus-caracteres, inaceitáveis no sacerdócio da medicina. Nessas horas só dá prá lembrar-se de Martin Luther King e sua famosa frase: “o que me preocupa não é o grito dos maus, mas sim o silêncio dos bons”. E eu, ao contrário, “adorável anarquista” que sou, não posso deixar de me indignar com essas cretinices e simplesmente não consigo ficar calada.












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